Confesso que não vivi

“As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época”.
Pablo Neruda 

A passagem do tempo, além de mais velhos, vai nos tornando mais cautelosos, prudentes. Sentimos mais medo e frio do que antes. Preservar-nos diante das inevitáveis adversidades já é motivo de alívio, antes de contabilizarmos histórias de sucesso e riqueza.

Foi com esse lastimável sentimento de derrota que vivi – ou deixei de fazê-lo – mais essa desventura corintiana em oitavas de final de Libertadores.

Era aniversário da cunhada e não me animei a levantar resistência em sair de casa numa outrora sagrada noite de quarta-feira. Ela acabou de se mudar e a TV ainda não está ajustada. Resignado, me contento em ver a partida pela telinha do celular.

Pois foi isso que os malditos mercadores fizeram com o nosso sentimento: em seu eterno e “inevitável” feirão, conseguiram matar nossa vontade de ver o time que seguimos a vida inteira se apresentar num confronto decisivo de Libertadores. Não é pouca coisa. E a lenta venda de ingressos, abaixo até do rival santista, mostra que o desencanto não é exclusividade deste carrancudo cronista.

Até houve aqueles clássicos 20 minutos de correria. Na segunda penalidade, Pitana colocou na cal e Jadson na rede. Temi pelo pior, que no caso seria a resistência do veterano time mapuche se esboroar e nosso medíocre onze construir o placar necessário.

Mas como não estou louco em achar que mais um desmanche aniquilou a qualidade de um time campeão construído com paciência e modéstia, o que não é tão simples de edificar, logo a verdade se apresentou na trama que resultou no gol de empate de Barrios.

E se você é envolvido na velocidade e explosão por um time que colocou em campo 8 jogadores acima de 30 anos e tem em seu velho trio de ataque a única arma temível, bom, precisa começar tudo de novo. Se você precisa recorrer a reiteradas faltas sobre um jogador que vive de brilharecos e se atira ao chão em metade das vezes que pega na bola, e mal te incomodava quando estava no próprio auge, é melhor parar e pensar na vida.

O intervalo veio com uma sensação bizarra de que era possível, mas não recomendável.

Roger fez o que se pode esperar dele, mas não podemos deixar de assinalar o acinte que consideramos ver um jogador de seu nível ser contratado pelo campeão brasileiro aos 33 anos de idade. Aliás, alegam crise financeira, mas contrataram 5 ou 6 centroavantes em 18 meses. E perderam o melhor, claro.

O jogo transcorreu como mandava o figurino e nossa mediocridade atroz contabilizou a mais vergonhosa de todas as eliminações em oitavas de final, sina que agora até os acríticos começam a achar deplorável.

Não me pesa a consciência ter vivido com tamanho desprezo uma ocasião tão importante do nosso clube. Vários bons amigos tentavam mostrar o lado bom da coisa, “vamo lá”, “coisa de louco não torcer pra ganhar”, “dá pra ir pro pau contra os porco” etc. Tudo verdade. Mas tudo temerário demais para este recente pai de família, a poucos dias de ver a cria soprar sua primeira velinha. Não é hora de mergulhar num inferno astral.

E antes de discutirmos quem é o mais louco do bando, o “fiel exemplar”, encaremos a realidade. Quem sabe assim todos se dão conta de que o único assunto daqui até o fim do ano deve ser o combate sem concessões aos “fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época”. 

O futebol chileno é um dos que podemos chamar de descapitalizados no continente, não pode nem começar a ser comparado em termos econômicos com o nosso. Não à toa nosso clube administrado de forma tão tenebrosa acabou de arrancar um jovem valor de lá.

Mesmo assim, como escrevemos na crônica do primeiro jogo, o Colo Colo conseguiu melhorar seu time para a fase em tela, enquanto por aqui tentavam nos dopar ao dizer que nada podia ser feito para preservar o que tínhamos de melhor.

Falando em oitavas de final, o mapuche não a disputava desde 2007. Vinha de seis quedas seguidas na primeira fase. 2014 era o ano da última participação deste país no referido estágio – quando a Unión Española caíra para o Arsenal de Sarandí.

Foi diante de tudo isso que conseguimos cair. Aliás, que Andrés Sanchez e seus amigos conseguiram nos derrubar.

E não foi falta de aviso. Logo no começo do ano nosso timoneiro Mós já alertava sobre a necessidade de nos fazermos maiores perante os rivais do continente.

Eu estava lá em 1999 e 2000, quando tive a maior certeza da minha vida de que o troco seria dado gloriosamente no ano seguinte daquela histórica quarta-de-final. E como “as memórias do memorialista não são as memórias do poeta”, fico com os detalhes aqui expostos para explicar meu sentimento de alívio com essa eliminação – tão grotesca quanto indolor.

Pois sinto mais frio e mais medo hoje do que em 2000. Portanto, jamais poderia confiar a garotos imberbes e atletas emprestados à espera da próxima transação a tarefa que Marcelinho, Edílson, Luizão, Vampeta, Edu, Ricardinho, Kleber e Dida não puderam realizar.

Não podemos mais engolir um clube a serviço de negociatas e que corre desesperadamente para discursos sentimentais para nos cegar e fazer enlouquecer com mais uma decisão, mais um clássico, mais um possível título. Disso tudo temos a barriga cheia.

É hora de retomar princípios. É hora de recuperar a dignidade de uma instituição que não nasceu para ser só mais uma na roda. É hora de retomar – nem que seja na porrada – valores que os amantes do dinheiro e suas espumas jamais poderão colocar em prática, apenas à venda.

Porque assim, o eterno poeta chileno que me permita, confesso que não quero viver.

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