O constrangimento à velha guarda corinthiana!

Imagine uma situação absurda: uma idosa de 73 anos chega à estação Itaquera, às 16h30 – pois estava em compromisso familiar, que encerrou mais cedo do que pretendia para estar lá -, animada, para retirar seu ingresso de não-pagante para a final do Paulistão, afinal lhe é proibido o direito de solicitar que alguém realize a retirada em seu lugar ou mesmo a possibilidade de imprimi-lo pela internet, onde necessitou, por burocracia, realizar um cadastro para reservá-lo. Por causa de problemas vasculares nas pernas, que lhe dificultam a locomoção, assim como problemas respiratórios, para muitas vezes no trajeto até a bilheteria do estádio e, por isso, chega ao local às 17h10, 10 minutos atrasada. A porta do local está fechada, mas há representantes do clube dentro. Solicita, com seu acompanhante, que lhe abram a porta. Dos três, um gesticula negativamente e apressadamente apagam as luzes. Do lado de fora, a senhora fica sem o ingresso, pois só lhe é autorizada retirada até um dia antes da peleja, que é este por sinal, nunca no dia do jogo. Decepcionada, volta para casa.

Da humilhação e do desprezo

Essa situação limite, suscetível de acontecer com os idosos corinthianos, não é invenção deste que vos escreve; é real. Aconteceu. O acompanhante da senhora era eu. Os contatos com o clube foram infrutíferos. Sequer um pedido de desculpas formal.

Mas afinal, quantas vezes não nos deparamos na chegada ao Itaquerão com idosos cabisbaixos voltando para o metrô, acompanhados ou sozinhos? Inúmeras vezes. Assim como pais chateados com crianças, pois não sabiam do procedimento de reserva de ingressos de não-pagantes; muitos, inclusive, com ingressos para assistir aos jogos.

Às crianças ainda é “concedida” a mordomia de que seus responsáveis diretos retirem os ingressos gratuitos; aos idosos, de forma nenhuma. Ou seja, o Corinthians obriga torcedores com mais de 60 anos – fase em que estamos mais suscetíveis a doenças – a se locomoveram duas vezes para ver uma partida.

A sensação é que o clube concede tais gratuidades somente por causa de uma pressão da torcida, mas que tal oferta é uma esmola, dada a contragosto pelos “gestores” – ótimo termo para descrever quem se preocupa muito com números e nada com o ser humano – do clube.  Por isso, de certa forma, infringe diversos constrangimentos: desde a necessidade de cadastro no site fieltorcedor.com.br/ingressos, pois a maioria das pessoas contempladas por esse “benefício” não sabem mexer na internet, até a impossibilidade de retirada do ingresso no dia do jogo. O recado é nítido: os não-pagantes não são bem-vindos no Itaquerão. Eles não cabem no modelo neoliberal que o clube adota há uma década, que visa a formação de um público consumidor, não torcedor – aqui está o cerne da questão.

Quem sofre mais é justamente a velha-guarda da Fiel. Indivíduos que já foram em muitos jogos no passado e – que, portanto, sim, já deixaram muito dinheiro nos cofres corinthianos, mas aqui está novamente o cerne da questão, não vamos comprar a mesma lógica perversa deles -, acima de tudo, amam o clube. Que sofreram, choraram, sorriram, vibraram e passaram momentos simbólicos de suas trajetórias, que – importante lembrarmos – estão chegando ao final, ao lado do Corinthians, que lhes foi abrigo, amigo, fuga ou encontro da realidade. E que, agora, perto do fim, lhes vira as costas, apesar da disposição para estar presentes mesmo com as dores que seus corpos lhes impõe. São essas pessoas, que o clube despreza, que transmitiram para filhos, netos e bisnetos o que é professar essa religião pagã, essa paixão – e também são àquelas outras “pessoinhas”, que ainda não entendem o Mundo e que a instituição renega por causa de valores financeiros, que podem manter os valores que realmente importam acesos; quem não conhece o concreto de uma arquibancada torcerá mesmo pelo Real Madrid ou Barcelona.

Quem ignora seu passado, não olha para o futuro.

Chega de migalhas

Qual a solução? Aqui está outro ponto importante. Poderia propor que o clube permitisse a impressão do ingresso pela internet ou que a retirada fosse realizada até o dia do jogo. Entretanto seria mais uma concessão nossa ao projeto deles. O que já fizemos muitas vezes. Fazemos o tempo todo. Vivemos uma era em que todos somos social-democratas. Quem faz acordo supostamente vantajoso para ambos com quem adota práticas que desvalorizam o ser humano, já cedeu, não há dúvidas de que está derrotado.

O confronto é necessário. A única solução possível é que o ingresso de não-pagantes ao estádio seja efetuado com a apresentação de um documento de identidade original com foto na catraca, como era no Pacaembu, sem número limite de acesso. É isso que temos de defender.

Àqueles que afirmam que isso prejudicaria as finanças do clube, parem de defender cartolas! Os não-pagantes nunca prejudicaram a receita do clube com bilheteria no passado quando o estádio não era nosso. O problema está mais embaixo, ou melhor: o problema está na nossa cara em cada notícia envolvendo o nome dos indivíduos e empresas envolvidas na construção do Itaquerão. São eles que tem de pagar a conta. Não a nossa velha guarda ou nosso pequeno futuro.

* Foto: Tia Geni falecida há poucos anos aos 91 anos frequentou o estádio até o fim de sua vida.

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