O pior dérbi da história

Não me perguntem em qual momento da história deixamos de nos sensibilizar com o trágico, o absurdo, o indizível. Morrem 80 mil pessoas “do nada” e ao olhar em volta vemos que uma quantidade enorme de gente simplesmente não compreende o significado disso.

Narcotizada por mentiras e mistificações, nossa sociedade está imobilizada por pessoas que mal sabem explicar o que querem da vida, mas exigem ser tratadas como revolucionárias, contestadoras, rebeldes cheias de causas.

São apenas imbecis desesperados por dinheiro, sombra e água fresca, hipnotizados por décadas de propaganda de uma vida que não está a seu alcance. E quanto mais essa horda age, mais inviabilizado fica o caminho para seus próprios sonhos de consumo, coisa que escapa completamente de sua compreensão.

É debaixo deste contexto de esgarçamento da vida social que querem futebol, no melhor e mais patético estilo pão e circo.

Pior, conseguem roubar nossa atenção, afinal, tomaram de assalto nossas paixões mais arraigadas e delas fazem o que querem.

Sabemos da imoralidade de se fazer um Corinthians x Palmeiras enquanto o número de casos de um vírus desconhecido e ainda incurável sobe descontroladamente. Sabemos da imoralidade de se tentar manter um calendário de 50, 60 jogos sem torcida.

Mas diante de tanto desmoronamento também queremos nosso pedaço de pão – dose de ópio seria a definição mais correta.

Além disso, é difícil demais ignorar um dérbi; não amadurecemos o suficiente.

Basta uma bola na trave aos 2 minutos de jogo para que sejamos definitivamente absorvidos pelo que acontece naquele retângulo. E lembrarmos que estamos diante de um time mequetrefe administrado por uma diretoria que parece fazer de tudo para revisitar a Série B.

Cai um gol do céu, com desvio no capitão fascista do rival e frango do goleiro nascido no terrão. Pequenas doçuras em meio à tragédia que rodeia o melancólico ambiente do estádio sem público.

Fim de um aceitável primeiro tempo. Esperamos que os demais 45 minutos passem o mais rápido possível e que essa farsa acabe logo.

O jogo segue de um jeito estranho, desconfiamos de cada movimento executado pelos atletas, sem saber como seria se estivessem sob o bafo da torcida. A má forma técnica e física é generalizada e raramente uma jogada começa e termina bem executada.

Felizmente, nosso goleiro está em dia com suas capacidades, enquanto o resto do time parece fisicamente acabado aos 10 minutos do segundo tempo.

A coisa vai se arrastando e só queremos que chegue a seu fim, pois no fundo só estamos “cumprindo tabela” enquanto torcedores, nos sentindo obrigados a acompanhar o time em toda e qualquer situação, ainda que sem prazer nenhum.

A sorte está do nosso lado. Conseguimos chegar ao apito final com a vitória no bolso.

Comunico-me com meu pai, a quem não vejo há 4 meses, e a resposta é a chamada de volta para o planeta Terra: “Nem vi essa bosta. Acho uma vergonha esse jogo”.

De fato é. Se não podemos compartilhar o que amamos com quem amamos, se não podemos juntar os amigos, se não podemos ir ao estádio, se não podemos viver nada que o futebol sempre nos propiciou é porque esse futebol não precisa voltar. Pode esperar, como estamos todos esperando. Como todos os demais esportes estão esperando.

Afinal, a volta do futebol se trata apenas de dinheiro. Dinheiro demais pra ficar parado, dinheiro demais para pensar em quem morre, como já deixara claro um dos comentaristas do jogo, descaradamente preocupado com seus interesses pessoais ligados a essa grande indústria, ainda que seja uma pessoa bastante abastada.

Que momento para ver nosso lado em vantagem no histórico de confrontos pela primeira vez em vida. O pior e menos saboroso possível. Pra lembrarmos que desse jeito as coisas não fazem sentido, não possuem razão de ser e não adianta nos enganarmos de que dá pra viver como se nada muito grave tivesse acontecido.

Amanhece a quinta-feira e lembramos que hoje morrerão mais de 1000 pessoas de causa evitável. Que ladrões e assassinos conseguiram tomar um país para si e governá-lo à base de sua sociopatia e caráter estelionatário. Que somos uma sociedade inviabilizada por todos os lados e depois disso tudo, sabe-se lá quando, será impossível voltar a conviver com certo tipo de gente.

É claro que vai dar tudo errado, inclusive essa volta ao futebol decretada por um governador que de baba ovo passou a antagonista do impostor-mor da República e autorizou a volta do futebol na cidade onde mais se morre por puro e simples revanchismo político. E eles, os impostores, dizem que as coisas não se misturam. Quem dera fosse verdade.

Apesar do valor, tanto histórico como pela circunstância em si do campeonato, sentimos um dos principais sintomas do vírus que assola o planeta: não conseguimos sentir sabor. Queremos, mas não conseguimos.

Dérbi da morte? Dérbi da vergonha? Clássico da cloroquina? Covidérbi? Só resta agora decidir como o primeiro Corinthians x Palmeiras sem torcida entrará para os registros.

Seria bom que parássemos de nos enganar e retomássemos noções básicas de dignidade. Só assim para termos de volta tudo aquilo que por ora nos é negado.

Foto: Reprodução da TV

3 Comments

  1. Grande texto, como sempre. Ganhamos, mas não virou assunto com meu pai (também há alguns meses sem vê-lo) nem com meu irmão. Acho que teriam dito algo parecido ao que seu pai disse. Talvez sem a lucidez do comentário dele, mas com o mesmo sentimento de que não era importante. No meio disso tudo realmente não é.
    Agora já classificado, tal qual um viciado em crack, provavelmente acompanharei o jogo na quinta-feira, mas com a apatia que NÃO nos é característica.

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    1. Sinto exatamente o mesmo. No fundo até acho uma pena não termos sido eliminados, pra evitar essa atenção quase inevitável para jogos que não deveriam ocorrer, ainda mais se tivermos novos clássicos.

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